ANO UM

Terceira Via™, estreia da performance na SOLAR Galeria de Arte Cinemática, Setembro 2013, © Margarida Ribeiro

Desde 2013 que tenho vindo a apresentar a conferência-performance TERCEIRA VIA™ em diversos contextos dentro e fora de Portugal, assumindo-a, desde 2014, como o evento transitório que marca simultaneamente o fim do Ano Zero (2012-2013) e o início do Ano Um (2015-2016) do macro-projeto Universidade | Yliopisto. Após uma residência introdutória apoiada pelo Núcleo de Experimentação Coreográfica (Porto), em 2013, a performance é pela primeira vez apresentada, ainda em modo Beta, no contexto do programa Cuidados Intensivos, projeto desenvolvido no âmbito do Circular/Festival de Artes Performativas de Vila do Conde, com curadoria de Joclécio Azevedo. Aproximando-se o lançamento oficial do Ano Um da Universidade | Yliopisto, em 2016, com a abertura do website interativo, a publicação do número #0 do manual de instruções Realpolitik™ e a apresentação da primeira de três TED talks, e após a realização do primeiro cluster internacional do projeto em Bucareste (Julho de 2015), re-publico aqui, em jeito de introdução quasi-promocional, o texto que escrevi para o catálogo dos Cuidados Intensivos (editado em 2014), por reconhecer nele uma súmula teórica do trajeto percorrido ao longo das duas “trilogias” anteriores — Vou A Tua Casa (2003/06) e A Oportunidade do Espectador (2007/08) —, e respetivos projetos documentais — Projecto de Documentação (2007) e Big Curator Is Watching You! (2010), ao mesmo tempo antevendo as bases teóricas fundamentais que vão estruturar, ao longo dos próximos 3 anos “letivos”, um novo projeto-trilogia e também um novo andamento no meu trabalho artístico e de investigação. 

Cuidados Intensivos, conversa pública durante a exposição Depósito de Artefactos Performativos, no Centro de Memória de Vila do Conde, Maio 2013, © Cátia Pinheiro

AESTH(ETHICS)
Notas para a compreensão do meu trabalho à luz (filtrada) do projecto Cuidados Intensivos
Todas as coincidências vêm por bem! Invisto neste postulado um sentido de fé (sinónimo de “certeza”) que considero inabalável, mas que nada tem de espiritual; é factual. Quando Joclécio Azevedo me convida para o projecto Cuidados Intensivos, pede-me uma contribuição documental para um programa de acções que pretende reflectir sobre a própria ideia de documentação; um enunciado que resume muito bem aquele que pode ser considerado o ADN do meu trabalho nos últimos 7 anos. Inerente ao processo de recolha e organização de objectos-memória, que subjaz a muitos dos meus trabalhos e legitima o projecto Cuidados Intensivos, está uma autonomização do processo documental que ultrapassa a ideia clássica de documentação enquanto operação subsidiária de uma acção (efémera, por norma) que é ou foi tornada pública e precisa de ser resgatada da sua morte natural. Ao invés, esse processo documental (e seus sub-produtos: arquivo, sistematização, taxonomia, organização, legendagem…) versa sobre si mesmo, numa autofágica trama de auto-referenciação. Como se no “hospital” erguido por Joclécio Azevedo habitassem objectos “ligados à máquina”, numa perpetuação artificial de matérias cuja vida subsiste já, ou apenas, na sua mera enunciação/nomeação. Respiram, porque são reactivados pelo olhar do espectador. Os artistas convidados e os objectos por eles cedidos, devidamente catalogados e etiquetados, têm assim uma função meramente “pretextual”. Ora, é neste meta-discurso que configura o referente enquanto pré-texto para se chegar a um outro texto, que encontro a coincidência maior entre os dois sistemas: trasladar alguns objectos-charneira do arquivo do meu trabalho para o dos Cuidados Intensivos não impôs qualquer alteração significativa do ponto de vista conceptual; a sua natureza referencial manteve-se intacta. Por outro lado, a coincidência formal entre os dois universos (o habitat e o habitante) fez com que este convite, em vez de absorver o meu trabalho, o reflectisse — um dispositivo especular que explica, roubando a Paul Virilio, parte do word game que dá título a este texto:
“Screen against screen, the home computer terminal and the television monitor find themselves in a face-off for the domination of the market global perception. This is a market of the icon rather than the idol; control of it will open a new era whose novelty will be as much ethical as aesthetic.”
[Paul Virilio, “The Visual Crash”, in CTRL [SPACE]. Rhetorics Of Surveillance From Bentham To Big Brother, 2002]

Ao ensaiar uma nova metodologia de colaboração e ao multiplicar-se por um desenho duracional de actividades distintas, mas concêntricas, Cuidados Intensivos sublinhou, assim, algumas das características mais imediatamente reconhecíveis do meu trabalho: o estado permanente de quarentena; a obsessão pela racionalização do risco, da falha, da ineficácia, da efemeridade; o investimento de sentido nas ideias iniciais, nos esboços, nos rascunhos, nos dados introdutórios, nos elementos em jogo (e respectivas cartas fora do baralho); a inevitável mise-en-abîme duchampiana da enunciação constante, da consciente sobrevalorização da legenda (mais que do objecto legendado), da extensividade quase infinita do “processo”, etc. Participar neste projecto permitiu-me, assim, re-equacionar problemáticas que já faziam parte da minha investigação, ao mesmo tempo que me convidou a construir novos axiomas, tornando-me consciente daquela que é, talvez, a questão seminal que alicerça todo o meu trabalho: O que é possível dizer, quando já tudo foi dito? Pergunta sem resposta (como todas as boas perguntas), mas a partir da qual este texto se permite a encerrar mais uma experiência meta-discursiva com vista a uma síntese propulsora de infinitas novas teses: prolongamento mais-que-perfeito da vida post-mortem desta minha participação nos Cuidados Intensivos (sim, porque a “máquina” continua ligada…). E assim, ao rever a matéria dada, clarifico não só o caminho que desemboca na performance Terceira Via™, mas também aquele que pretendo trilhar durante o próximo ano, num projecto que irá inaugurar não uma nova fase, mas um novo andamento. Chama-se UNIVERSIDADE e na verdade já começou: neste texto. Regresso a Mark Dion, que extensivamente citei num dos momentos públicos, pois é com base num dos seus aforismos que pretendo iniciar esse projecto, fazendo a historiografia das minhas Ideias, através da abertura ao público do museu das minhas Coisas:
“Never in History the world has a culture been so based on Stuff”.
[Mark Dion, Archaeology, 1999]
Por enquanto, comprometo-me a anular o texto, para apresentar apenas as notas de rodapé (roubo formal descarado ao Enrique Vila-Matas), fazendo o resumo possível da minha passagem pelos Cuidados Intensivos em 20 notas simples. Ao leitor caberá a responsabilidade est(ética), logo política, de moderar as forças causadoras da tensão entre o que o artista diz e o que o artista faz. Lendo: 
(1)
Correcção retroactiva da realidade — Interesso-me pelo que é, quase nunca pelo que será, às vezes pelo foi, sempre pelo que poderia ter sido. Ou seja: never skip the intro, stay there!
(2)
“Intensivo” e “extensivo” são doppelgängers — Se estivéssemos a falar de música, o meu trabalho seria sempre uma extended version, nunca uma radio edit.
(3)
Auto-citação (Centro de Memória, Vila do Conde, 25 de Maio de 2013) — “Aproveitando a coincidência do espaço sistematizado e taxonómico que é o arquivo da exposição Depósito de Artefactos Performativos, pretendo operar um diálogo-readymade, ao mesmo tempo amador e científico, entre a presença documental (e memorial) de alguns objectos-prova e a ideologia possível criada a partir da arqueologia do supérfluo, do inútil, do parasitário ou do insignificante. Ou sobre a separação higiénica entre Arte e Coleccionismo.” Por exemplo:
(4)
“Cenografia”, para mim, é reconhecer que a estante que guarda os meus livros em casa é a mesma que vai guardar os meus livros na galeria — Há uma linha que separa a criação da revelação; o problema é que essa linha é invisível, o que me leva a crer que se calhar não existe. Já a minha Wunderkabinnet não é uma metáfora. Existe!
(5)
Bouvard e Pécuchet são uma e a mesma pessoa — Faço da “prática artística” o meu campo de investigação, mas sempre na condição de diletante, o mesmo que ama e odeia, ou então que ama porque odeia, o mesmo que enfrenta a cultura dominante, que desafia a percepção e a convenção, que desmistifica a autoridade. Não sou da Arte, mas estou na Arte. Sou um observador participante (vulgo nerd) movido pela mesma obsessão que dirige a acção de um coleccionador que tudo faz para conseguir o selo que lhe falta (e que muito provavelmente não existe).
(6)
Também não existem verdades inquestionáveis, por isso crio as minhas — Pesquisa Google: Dogma 2005.
(7)
Nomenclatura — O conceptual não é um género, não é um estilo, não é uma moda, não é uma tendência. É só um adjectivo que adjectiva aquilo que é do “conceptual” (substantivo). Também não tem gradações: ou é conceptual ou não é conceptual.
(8)
Distopia — Muitos artistas procuram “estética” em universos exteriores à mesma: a estética da ciência, da política, da cultura pop, da economia, das relações sociais, do quotidiano, das preocupações ecológicas, dos direitos humanos, da libertação LGBT… A mim só me interessa a estética da Estética. A Arte, enquanto receptáculo ao mesmo tempo côncavo e convexo dessa mesma Estética, torna-se assim não o lugar onde estou, mas o ponto a partir do qual me posiciono. E é sempre o local de um crime, o terreno mais propício à criação de ideologia.
(9)
Entropia — Por exemplo, um dos meus passatempos preferidos é descobrir Arte que não se parece com arte, uma espécie em vias de extinção (tal como as Ideias).
(10)
Peta-Byte Age — No dia em que Arthur Danto morre, eu escrevo este texto, e 120 obras filosóficas do século XX são colocadas online para download gratuito. Todas as coincidências vêm por bem: para quê cantar “ao vivo”, se podemos fazer playback?
(11)
Sobre métodos, metodologias, estratégias e estratagemas, sigo o Código Deontológico dos Jornalistas, e depois tenho vários amigos — “O obscurantismo pedagógico procura asilo e refúgio na tecnicidade” (Georges Gusdorf); “O especialista é aquele que sabe cada vez mais sobre um domínio cada vez mais restrito, de modo que a sua realização perfeita é saber tudo sobre nada” (Chesterton); “É por isso que a verdadeira teoria crítica, se um dia houver, será idêntica à mística autêntica. (…) Como crítica do caminho, ela levará aonde nós estamos” (Peter Sloterdijk). E eu respondo: Aqui.
(11a)
Chegar à Arte sem ser através da arte — Segundo o cozinheiro Ferran Adrià, existem 4 níveis de criatividade: 1) seguir a receita, 2) adicionar um cunho pessoal à receita, 3) inventar uma receita nova, 4) criar uma técnica para inventar receitas novas. O último nível é, na verdade, o único verdadeiramente “criativo”.
(11b)
Hermenêutica Nerd (parte II) — “O melhor não é necessariamente bom” (Thomas Hirschhorn). E a preguiça é o novo avant-garde.
(12)
Não sou situacionista, sou um Homo Ludens — O meu destino, como o de todos os Homens, é o de e-Xistir. Ler o ensaio filosófico “Vigiar e Punir” de Michel Foucault. E depois ler o manual de instruções “1984” de George Orwell. E a seguir construir uma prisão sem paredes dentro de uma galeria chamada You Are Free To Do What We Tell You.
(13)
Pediram-me que escrevesse, em Lingua Franca, uma frase que sintetizasse o meu trabalho — Assim: “My work is more ontological than anthological, which means it cares less about History, and more about his’story: the best story to be told is the one related to the project itself.”
(14)
Reality Show — O meu trabalho consiste em juntar, a cada novo projecto, o prefixo mais conveniente à palavra “Realismo”. Por exemplo: Novo-Realismo, Proto-Realismo, Sub-Realismo, Meta-Realismo, Über-Realismo, A-Realismo, Alter-Realismo, Infra-Realismo, Re-re-re-Realismo (também conhecido por Realismo Gago), etc. Objectivo primordial: parecer-me comigo próprio. “TV was supposed to offer — as the ultimate escapist entertainment — the fictional world far from our actual social reality. However, in reality soaps, reality itself is recreated and offered as the ultimate escapist fiction.” (Slavoj Žižek). Ou seja, Terceira Via™.
(15)
Lo-Fi Sophy — Por culpa do Bourriaud, sou obrigado a afirmar que o meu trabalho não passa de uma bande-annonce: não existe filme, só making of.
(16)
MASHUP (ou então copyleft) — Ver o “F For Fake” de Orson Wells, depois o “The 5 Obstructions” de Jørgen Leth/Lars von Trier, e a seguir ouvir a discografia completa do DJ Girl Talk, para no fim substituir a palavra fraude por apropriação, confiscação, re-interpretação, reenactement e demais estrangeirismos do campo semântico dos prêt-à-porter’s para-artísticos.
(17)
Ego-Centrismo vs. Ego-Periferalismo — O meu trabalho é auto, é bio e é gráfico, mas jamais “autobiográfico”. É sobre a universalização do particular e sobre a particularização do universal. Nem mais, nem menos, nem mais ou menos. Igual.
(18)
Realpolitik — Cinismo (com letra maiúscula) não é sinónimo de arrogância (com letra minúscula). Só consigo “amar” a Arte se a humilhar publicamente primeiro.
(19)
Os espectadores — Dividem-se entre aqueles que durante a conferência-performance Terceira Via™ põem a mão direita sobre o peito para ouvirem o hino de um País que não é o deles, e aqueles que se recusam a fazê-lo.
(20)
O meu nome é Rogério Nuno Costa, e tal como todas as pessoas que são artistas em 2013, nasci em 1917.
University, Cluster #1. Bucharest, lecture at ODD, July 2015, © Stefania Ferchedau

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