©António Alexandre Palma [foto] & Tiago Loureiro [styling].
(Respostas completas às perguntas que a jornalista do Correio da Manhã me colocou.)
Porquê uma peça sobre a cena hipster?
Não posso afirmar que o espectáculo “Residência (Artística)” seja “sobre” a cena hipster. As premissas do projecto estão mais próximas de alguns lugares-comuns caros ao universo das artes performativas, nomeadamente aqueles que revelam/denunciam algumas das fragilidades dos processos colectivos de criação/co-criação. A ser “sobre” alguma coisa, o espectáculo é sobre ensaios, espaços de trabalho, direcção/encenação, esquemas de produção, análise de documentos, reuniões, avanços e recuos, erros e falhas, e vontades de desistir. Acima de tudo, o espectáculo é sobre esse cliché da contemporaneidade performativa que são as “residências artísticas”, espaços onde os conceitos de ócio e negócio sobrevivem em constante tensão dialéctica, e onde grupos de artistas/criadores se convencem que estão a “criar” num espaço com características supostamente distintas do seu habitat natural de trabalho. Hoje em dia, o “estar em residência artística” é tão comum que passou a ser o habitat natural de criação do artista, e já não uma excepção exótica qualquer… O espectáculo que fiz com um grupo de 6 actores (totalmente criado/produzido “em residência artística”) é justamente sobre esse espaço transitório onde se “reside”, com o objectivo de se concretizar algo que seja do regime do “artístico”, e onde o tempo se torna mais elástico (e lento) porque os corpos resistem à ideia de rotina. Um mês em residência bastou para percebermos que estávamos a trabalhar em cima de um conceito (mais ou menos operativo) ao qual chamámos “preguiça” — tratando-se daquilo que não se espera de nenhum artista, achámos que estávamos no bom caminho! A cena hipster surgiu posteriormente, quando precisámos de fabricar uma imagem que promovesse não só o espectáculo, mas sobretudo essa ideia de “preguiça residente”, ao mesmo tempo estética e política: tal como os hipsters, queríamos desenvolver uma qualquer arrogância cínica, demitindo-nos de tudo (inclusive do próprio espectáculo), para então podemos apresentar a Preguiça como o “novo avant-garde“, um estilo a adoptar se quisermos ser pessoas interessantes. Sabendo ser fácil “mimar” o estilo hipster (ou pelo menos os clichés que sobre ele abundam nas redes sociais), tratou-se apenas de colar uma imagem aos corpos dos 6 actores e fotografar, sem qualquer ligação (pelo menos imediata) com o que de facto iria acontecer em palco.
Considera que há hipsters (ou traços desta sub-cultura) em Portugal?
Não acho que o “hipster” seja uma sub-cultura, nem tão pouco um movimento. Na verdade, acho que os hipsters não existem; são um mito da Internet! Mas também posso dizer que “hipsters” sempre existiram, em todas as épocas e em todas as culturas, o que vai dar praticamente ao mesmo. O pseudo-movimento interessa-me justamente por isso, por ser mais uma condição dos tempos modernos e não uma corrente ou um manifesto underground com limites espácio-temporais definidos; é um filho directo do monopólio da virtualidade e da tele-comunicação sobre a “realidade”, e isso foi um perfeito subterfúgio conceptual para o que queria tratar no espectáculo. Em Portugal existem muitas pessoas que se parecem com hipsters (ou seja, com a caricatura de hipster que aparece nos sites humorísticos, também eles muito hipster…), mas acho que aqui a máxima do “se se parece com um pato, se nada como um pato, logo é um pato” não funciona… Acho que o charme do hipster está justamente em nunca se saber se é ou não. Até porque nunca é.
Como caracterizaria este movimento?
A ser um “movimento”, então é o movimento mais oco e preguiçoso de que há memória. Anula-se a si próprio a partir do exacto instante em que se afirma e se auto-denomina. O típico “hipster” é aquele indivíduo que não se preocupa minimamente em aprofundar as bandeiras que escolhe drapear (seja o veganismo, seja o noise japonês, sejam as focas em perigo no Canadá, seja o walkie talkie que é agora o novo discman), desde que se faça um desenho (meramente formal) que remeta vagamente para uma série de outros movimentos “marginais” do passado (beats, hippies, grunges, punks, etc.). É preguiçoso porque não precisa de pensar muito, nem de plasmar no papel um programa político-social, nem de partir vidros de montras, nem de organizar Woodstocks. Basta ter uma ligação à Internet. Esta preguiça, que é só conceptual (na forma, o “look” hipster pode ser bastante sofisticado…), era tudo o que eu precisava para criar uma solidez (mesmo que meramente decorativa) para a imagem da peça. A título de exemplo: uma das acções mais recorrentes do espectáculo é a documentação, em fotografia, e em tempo real, do próprio espectáculo: não está a acontecer rigorosamente nada, mas eu vou fotografar na mesma para partilhar com os meus amigos no Tumblr. Queria um espectáculo tão vazio e ao mesmo tempo tão folcloricamente ridicularizável quanto o “movimento hipster”. Ou seja, fiz um espectáculo que todos os hipsters amaram odiar.
Quais foram as suas inspirações (desde as mais pequenas às mais relevantes) – desde música, cinema, …
Todas as escolhas foram óbvias. Mesmo que “óbvio” não seja necessariamente sinónimo de “preguiçoso”. Mas queríamos referências reconhecíveis, da performance art ao cinema experimental. Tudo cenas que os hipsters amam amar. Vimos imensos trabalhos do Andy Warhol & amigos, pessoal que orbitava em redor da Factory só porque sim, ou então porque se arranjava droga facilmente; pessoas que partilhavam a mesma e total ausência de sentido para a Vida e para o Mundo. E que se suicidavam aos 30 quase que acidentalmente. Imagens da trilogia “Flesh/Heat/Trash”, de Paul Morrissey chegam mesmo a aparecer no espectáculo. Vimos tudo o que havia para ver do John Waters, e daí para baixo foi sempre a descer pelas facetas mais podres e decadentes do ser humano, até batermos no fundo. “Bater no fundo” também fazia parte das premissas. Paralelamente, fazíamos muitas festas dionisíacas ao som da Banda Uó, um trio brasileiro que “hipsterizou” o tecnobrega e o transformou numa caricatura do que é que significa ser suburbanamente “fixe”. Nós cá não temos nada que se pareça com tecnobrega, mas ainda assim decidimos pegar na “música pimba” (a realidade musical mais próxima) e pedimos ao Peter Shuy que a “hipsterizasse”, criando um novo estilo musical: o “electropimba”. Isto não quer dizer mais nada a não ser a facilidade com que hoje em dia se criam “trends” só porque se tem um Macintosh com uns programinhas user-friendly lá dentro. E “Residência (Artística)” queria muito ser um espectáculo assim: sedutoramente fácil, vazio e “fixe”.
O que foi mais difícil em todo o processo?
Foi tudo muito fácil. Faz parte do ADN da espécie humana entregar-se de corpo e alma (mais de corpo que de alma) ao ‘dolce far niente’.
Quantos actores tinha a peça e de que forma os conseguiu envolver no tema?
Seis actores. Todos eles muito “fixes” na sua maneira de ser enquanto pessoas (logo, enquanto actores). E todos eles incrivelmente preguiçosos. Apesar de ter graus de proximidade diferentes em relação a cada um deles (alguns já tinham trabalhado comigo antes, outros não), a resposta à proposta foi muito pacífica.
Quanto tempo de ensaios tiveram?
Um mês.
Quando estreou a peça pela primeira vez?
Estreou no dia 27 de Março de 2012 no Teatro-Cine de Torres Vedras.
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